FALÁCIA
A primeira fonte sistemática do estudo das falácias são as Refutações Sofísticas de
Aristóteles, tema que aparece também tratado nos Primeiros Analíticos, nos Tópicos e
na Retórica.

Aristóteles distingue dois grupos de falácias: o que se liga ao uso da linguagem e o
que é
independente do uso da linguagem. Ainda que, tal como acontece nas
Refutações Sofísticas, as falácias sejam vistas num contexto dialético, a tradição que
se lhe seguiu tendeu a considerá-las em termos monológicos, o que acabou por criar
dificuldades quanto à sua teorização sistemática.

A distinção contemporânea entre «falácias formais» e «falácias informais» visa de
alguma maneira distinguir entre a questão da
validade no que diz respeito à estrutura
lógica do raciocínio (e que se centra nos processos de inferência do raciocínio, ou seja,
no processo formal da passagem de dadas premissas para uma conclusão), para as
que consideram o raciocínio em termos de
cogência, sendo que «um argumento
persuasivo é ‘cogente’ (...) apenas quando as razões aduzidas tornam racional aceitar
a tese para a qual foram oferecidos como suporte» (Blair, 1992: 361).

Na análise da cogência do raciocínio são consideradas, por exemplo, a aceitabilidade
das premissas, a sua
relevância para estabelecerem a conclusão e a sua suficiência
para suportar a mesma. Assume-se, assim, uma perspetiva
crítica sobre o raciocínio
e a sua classificação como falacioso, ou não, está associada a um conjunto de
perguntas críticas que visam testar a sua força.

Das teorias da argumentação que seguiram a via da chamada «lógica informal»,
centradas essencialmente na questão da
avaliação dos argumentos e no teste da sua
força, faz sempre parte uma referência às falácias. Toulmin, Rieke & Janik distinguem
cinco grandes grupos de falácias: falácias que resultam da falta de razões, falácias que
resultam de razões irrelevantes, falácias que resultam de razões defeituosas, falácias
que resultam de assunções sem garantia e falácias que resultam de ambiguidades nos
argumentos (Toulmin, Rieke & Janik, 1984:129-197).

Deve ainda referir-se que qualquer teorização das falácias está sempre associada uma
teorização específica da argumentação. Assim, o conjunto de falácias anteriormente
referido só pode ser percebido em função do padrão de argumento desenvolvido por
Toulmin e que é composto por cinco tipo de elementos que entre si se articulam: os
dados, a tese, a garantia, o reforço, a reserva e o qualificador.

No seguimento da obra de Hamblin (1970) — para o qual «não dispomos de qualquer
teoria
das falácias, no sentido em que dispomos de teorias do raciocínio ou da
inferência correta» (1970: 11)  — tornou-se hábito distinguir entre o «
tratamento
standard
» das falácias, ou seja, aquele que, no seguimento de Aristóteles, considera
como falácias argumentos que parecem ser válidos mas que não o são e as
abordagens supostamente
alargadas que comportam considerações dialéticas, ou
seja, que as liga aos contextos de interações especificadas por finalidades e regras.

Dentro desta nova abordagem as falácias — muitas vezes associadas ao raciocínio
informal, tal como é utilizado nas transações discursivas em linguagem natural — as
falácias são definidas seja como a «violação de qualquer das regras do procedimento
de discussão por que se pauta uma discussão crítica (seja ela cometida por qualquer
das partes e em qualquer dos estádios da discussão)» (van Eemeren e Grootendorst,
2004a: 175), seja como «um padrão de argumentação que viola um dos critérios que
um bom argumento deve satisfazer e que ocorre com um certo grau de frequência»
(Johnson & Blair, 2005: 54) seja, ainda, como viragens no tipo de diálogo que está a
ocorrer (Walton). Neste último sentido, por exemplo, o apelo à força (
ad baculum) é
legítimo num diálogo do tipo «negociação», mas é uma falácia se ocorrer num diálogo
do tipo «persuasão». Ou seja, as teorias contemporâneas das falácias tendem a
«socializar» a ideia de falácia, fazendo depender a questão da validade, para além de
aspectos lógico-formais, quer da submissão do raciocínio a «testes críticos», quer da
definição dos contextos em que ocorre o raciocínio e que são classificados como «tipos
de diálogo», quer, ainda, da legitimidade dos «movimentos estratégicos» realizados
num processo de resolução de divergência de opinião.

Contra esta conceção supostamente «alargada» do conceito de falácia escreveu Willard
(1989: 220): «advogarei que os estudiosos da Argumentação usam falácia como um
termo estrito da arte cuja fonte de autoridade é a lógica e não um termo abarcante
para qualquer condenação que os críticos possam querer fazer. Esta tese não deriva
da preferência de uma visão restrita sobre uma visão alargada (argumentarei adiante
que os recentes modelos das falácias são apenas aparentemente alargados), mas da
convicção de que falácia é uma classificação inapropriada para defeitos morais,
processuais e relacionais. Estes defeitos podem ser condenáveis, mas a classificação
falácia não identifica a autoridade que está por detrás dessas condenações». Neste
sentido, escreve ainda, «os teóricos da argumentação não precisam de pensar as
falácias em termos inibitórios. É viável conceptualizar as regras que estão por detrás
delas mais como topoi do que como restrições» (Willard, 1989: 235).

Uma das formas mais interessantes de considerar as falácias é vê-las como uma
forma característica de contra-argumenta
r, manifesta, justamente, na acusação
de falácia ou na classificação do discurso do outro como falacioso. Segundo esta
orientação, as falácias podem geralmente ser associadas a duas funções
argumentativas: a de
produzir um contradiscurso de dúvida ou de refutação da
força de certas formas de raciocinar presentes no discurso do outro (cujas conclusões
assim se desclassificarão) e a de produzir um
contradiscurso relativamente aos
procedimentos ou atitudes
 que os participantes assumem um relativamente ao
outro no decorrer da interação. Esta distinção permite diferenciar dois tipos de
contradiscurso ligados à acusação de falácia (ainda que eles se misturem na prática):
Rui Alexandre Grácio
 
VocAbulário
 
© Rui GrÁcio 2015
a) os que põe em relevo a estrutura lógica do raciocínio considerado do ponto de vista da ilação que produz e a aceitabilidade das conclusões
(sendo que aqui são visados os «saltos inferenciais» ou o modo de produzir ilações) e

b) os que se referem à suposta transgressão de regras que tornam o debate possível, o mantêm em aberto e o tornam suscetível de
progressão. Neste caso, não se trata de questões de ordem lógico-inferencial (formal ou informal), mas de reclamar critérios que assegurem
as condições da interação argumentativa de modo a que os interlocutores sobre ela mantenham o interesse.

A acusação de falácia surge aqui não como uma forma de criticar os argumentos em termos da sua substância ou das suas premissas mas,
antes, o modo como se procede ao argumentar, seja quanto a lidar com o assunto em questão, seja com a natureza dos argumentos
apresentados.

Nos modos de criticar os «saltos inferenciais» encontramos, por exemplo, a acusação de generalização abusiva, de petição da princípio,
de
razões irrelevantes, de ambiguidades terminológicas, de inconsistência lógica, de assunções não provadas, entre muitas outras.
Nas falácias ligadas à estrutura da interação encontramos acusações de
negligência da objeção principal, de fuga ao assunto, de recurso
a
ataques pessoais, a argumentos pela força, pela autoridade, pela piedade, pelo apelo ao povo entre muitas outras.

Por conseguinte, se as falácias forem vista à luz da uma perspetiva interacionista é possível abordá-las não como erros ou faltas, mas como
estratégias argumentativas feitas no âmbito da produção de um contradiscurso.

Esta via vai ao encontro da curiosa afirmação de Toulmin, Rieke & Janik (1984: 131), segundo a qual «o mais perturbador para certas
pessoas é os argumentos que são falaciosos num dado contexto poderem deixar de o ser num outro contexto. Por conseguinte, não nos será
possível identificar quaisquer formas intrinsecamente falaciosas de argumentação. Em vez disso, tentaremos indicar porque é que certos tipos
de argumento são, na prática, falaciosos num ou noutro tipo de contexto».

Vejamos, a partir do enfoque interacionista, como a acusação de falácia é, antes de mais, uma forma de interagir com o discurso do
outro
. Um dos pontos essenciais na interação argumentativa é a focalização do assunto em questão e dos termos em que ele se coloca. A
confrontação que aqui se estabelece levará frequentemente à acusação de fuga ao assunto por parte daquele que quer fazer prevalecer os
seus termos para enquadrar o assunto em questão e levará quem recusa os termos do assunto em questão a acusar o oponente de querer
impor à força a sua perspetiva. No primeiro caso poderá invocar-se a
ignoratio elenchi: dir-se-á que o interlocutor ignora o que
verdadeiramente está em causa, que faz manobras dispersivas para a ele fugir («
homem de palha», «envenenamento do poço», non
sequitur
, etc.).

Podemos dizer que ele se está a centrar sobre o acidental e não sobre o essencial. Esta acusação, por sua vez revela-se como uma forma de
argumentação
ad personam, no sentido em que leva à desqualificação do interlocutor (foge, é cobarde, esquiva-se, não quer «dar o braço a
torcer», recusa-se a ouvir, não tem argumentos e por isso tenta contornar os assuntos, etc. Todas estas acusações remetem para o carácter
do interlocutor). Por sua vez, o oponente poderá acusar o seu interlocutor de querer ser o dono das questões e não lhe reconhecerá essa
autoridade. Dirá que não se deixa intimidar e que rejeita a atitude de força (
ad baculum). Rejeitará a forma dicotómica como o adversário
coloca a questão («falso dilema») ou poderá acusá-lo de estar a misturar dimensões que devem ser tratadas separadamente («pergunta
complexa»).

Mas, supondo que os interlocutores não contestam os termos em que é colocado o assunto e as questões relevantes, eles podem todavia
contestar os modos de argumentar do adversário. Podem distinguir entre razões e motivos e alegar que, de facto, aquilo que o interlocutor
apresenta são motivos. Classificarão assim os argumentos como irrelevantes, porque apenas apoiados numa dimensão psicológica (
ad
mesericordiam
) ou então porque pensam a partir das consequências (ad consequentiam). Ou então acusarão os raciocínios dos
adversários como mal-formados (
petitio principii, assumptio non probata, etc.).

No campo da desqualificação do raciocínio, vários contradiscursos podem ser produzidos. No que diz respeito a todos os tipos de raciocínio de
teor indutivo pode sempre perguntar-se até que ponto não caem eles numa generalização precipitada, até que ponto os exemplos ou as
amostragens são representativas ou até que ponto não estamos perante uma indução preguiçosa. Mas podemos também achar que estamos
perante uma «falsa analogia», ou que o raciocínio é feito na «omissão de dados essenciais», ou que o interlocutor inventa factos ou os
distorce. Podemos acusar os raciocínios de serem
inconsistentes pois procedem a uma afirmação do consequente ou a uma negação do
antecedente. E se outros argumentos se invocarem, como por exemplo o «apelo à ignorância» ou o «apelo ao povo», podemos sempre dizer
que «isso não é um argumento, mas uma falácia». Podemos até ser mais condescendentes e procurar mostrar ao interlocutor que está
baralhado no seu raciocínio porque há ambiguidade nos termos que usa, que se trata de um caso de anfibiologia, ou que está a colocar a
ênfase onde não deveria. É claro que o interlocutor pode não gostar e ripostar com um «mas quem é que tu pensas que és?», fazendo uma
inflexão
ad personam. Ou então acusar o interlocutor de fazer exatamente o mesmo (tu quoque). Contudo, pode resistir a seguir por este
caminho e retomar o raciocínio no próprio terreno do adversário para dele divergir (
ad hominem).

O que são todos estes, e outros, esquemas argumentativos senão modos de considerar o discurso do outro com vista à interação? O que
representam senão uma estratégia de, nomeando e classificando o discurso do outro, lhe anularem ou diminuírem a eficácia e, no mínimo, o
apresentarem como relativo, questionável e problemático? Qual a sua função senão a de apresentar em termos «técnicos» e especializados a
consideração do discurso do outro e desmontar a sua estratégia pela eventual classificação de falácia ao seu modo de raciocinar e, em todos
o caso, auferir da vantagem de classificar o discurso do outro?

Com efeito, nomear um esquema argumentativo significa, frequentemente, reconduzir a argumentação do outro à dimensão técnica de uma
estratégia e, assim, questionar a sua boa fé argumentativa em detrimento de uma visão meramente adversarial — unilateral e supostamente
manipuladora — dos seus propósitos. É aliás por isso que a passagem para o nível metadiscursivo em que o discurso do outro se torna objeto
de classificação, não por aquilo que diz, mas pela técnica utilizada, aparece geralmente como a antecâmara de uma argumentação
ad
personam
que visa desclassificar o discurso do opositor pela desqualificação do seu carácter. Ainda sobre o efeito de classificação, note-se
que aquele que consegue «ver» os argumentos como exemplares de tipos ou formas de argumentar liberta-se, de alguma forma, da sua
dominação e, nesse gesto, desloca as questões de argumentação de critérios técnicos de avaliação para as relançar ao nível do significado do
empenhamento filosófico que se têm na própria argumentação. Podemos assim ver que, como propõe Angenot (2008: 95), «os esquemas de
raciocínios supostamente válidos nunca o são para todas as pessoas nem em todas as circunstâncias; os sofismas formam uma zona
cinzenta, mais do que uma classe de imposturas ou absurdidades». Como nota Plantin (1995d), podemos «ver na acusação de falácia não
uma sentença que transcende o debate no qual se situa a argumentação assim rejeitada, mas como um momento desse debate». Ou seja, a
acusação de falácia é um modo de argumentar que recorre ao
argumentum ad fallaciam.