LÓGICA NATURAL
A lógica natural é a designação adotada por Jean-Blaise Grize para a sua
teorização dos processos espontâneos que são acionados quando
raciocinamos ao falar. Ela não se ocupa com a dimensão normativa da
argumentação, debruçando-se, antes, sobre o estudo das operações do
pensamento que são postas em jogo no discurso. Tais operações do
pensamento são encaradas em oposição àquelas que encontramos na
lógica matemática e formal. E o que as distingue?

Em primeiro lugar, o facto das primeiras serem naturais — donde Grize
utilizar a expressão «lógica natural» para designar o campo de estudo que
delimitou — e as segundas serem artificiais. Enquanto as operações da
lógica natural procedem da espontaneidade da aprendizagem de uma
língua materna, o mesmo não acontece com a lógica matemática e com as
línguas artificiais.
Em segundo lugar, as operações lógicas, de um ponto
de vista da lógica natural, estão indissociavelmente ligadas a atividades
discursivas, ou seja, são sempre «operações lógico-discusivas» (Grize,
1997: 65) indissociáveis de um contexto de comunicação, o que não
acontece quando lidamos com sistemas formais.
Em terceiro lugar, e ao
contrário da lógica formal onde a noção de sujeito enunciador está
ausente, na lógica discursiva ela é constitutiva do processo de
comunicação.
Finalmente, se a lógica formal é uma lógica abstrata, a
lógica natural é simultaneamente uma lógica dos sujeitos (sempre em
situação) e uma lógica dos objetos (sempre em torno de referentes
específicos), centrando-se na relação locutor-auditor que subjaz à própria
ideia de comunicação.

O conceito de argumentação que neste quadro surge remete, então, para
uma situação de comunicação e de interlocução (a argumentação é
discursiva e dialógica) em que estão em jogo estratégias lógico-discursivas 
destinadas a influenciar e a agir sobre um auditor de forma a modificar o
seu modo de encarar um determinado estado de coisas. Neste sentido, e
como alternativa à ideia de que argumentar é fornecer razões para apoio
de uma tese — que corresponde a uma visão corrente da argumentação —
, propõe Grize (1997: 40) uma conceção mais alargada: «mas pode ser
também possível conceber a argumentação de um ponto de vista mais lato
e de a entender como um processo que visa intervir sobre a opinião, a
atitude e, mesmo, o comportamento de alguém. Deve contudo insistir-se
que os meios são os do discurso (…)».

Mas a questão central da argumentação, na perspetiva da lógica natural,
não é tanto a dos efeitos ou resultados produzidos por essa intervenção,
como a da explicação de como ocorre aquilo que Perelman designou por
«contacto dos espíritos», entendido este, para Grize, como o
estabelecimento de uma plataforma comum que torna possível a influência
a partir de uma partilha: «tal como eu a entendo, a argumentação
considera o interlocutor não como um objeto a manipular, mas como um
alter ego com o qual se quer partilhar uma visão. Agir sobre ele é
procurar modificar as diversas representações que lhe atribuímos,
colocando em evidência certos aspectos das coisas, ocultando-lhe outros,
propondo-lhe novos e tudo isso com a ajuda de uma esquematização
apropriada» (Grize, 1997: 40). Esta partilha é desde logo
propositivamente veiculada pelas imagens prévias que se tem do assunto
em causa, de si próprio e daquele ou daqueles a quem o discurso se dirige
e cuja interpretação visará reconstruir as representações do primeiro. E o
que são essas representações? Elas são modos de ver que precedem o
discurso e que nele aparecem sob a forma de «
esquematizações»
orientadas pela finalidade de «
dar a ver». Ora é isso mesmo o que
interessa ao ponto de vista da lógica natural e que decorre do postulado
que esta assume, a saber, que «toda a ação, todo o comportamento e, em
particular, todo o discurso, repousa sob o modelo mental de alguma
realidade específica» (Grize, 1992: 2-3).

Sendo assim, são as operações cognitivas que se estabelecem no trânsito
do nível mental pré-linguístico para o nível do acontecimento discursivo
aquilo que se constituirá como objeto de estudo desta lógica. O que se
produz nesse trânsito são esquematizações e uma esquematização não é,
pela finalidade para que tende, uma operação arbitrária, «ela resulta da
aplicação de um certo número de operações que podemos chamar
lógico-
discursivas
. Elas são lógicas porque são operações do pensamento e
discursivas porque o pensamento se manifesta através do discurso.
Chamarei então, por definição,
lógica natural à teoria destas operações
lógico-discursivas próprias a engendrarem esquematizações» (Grize, 1997:
3). Mas a originalidade do pensamento de Grize está em considerar que
estas esquematizações são um
ato semiótico: elas não procuram
defender teses mas, sim, dar a ver o modelo a partir do qual discorrem,
evidenciarem uma perspetiva: «existe aí um ato semiótico que consiste
em dar a ver, dar a ver o seu modelo mental através do discurso que se
tem. A partir daí, e porque são visíveis, as esquematizações são
analisáveis e, como disse, o instrumento de análise será para mim a lógica
natural. Sugiro que os resultados destas análises fornecem índices
próprios para obter os dados sobre os modelos mentais» (Grize, 1997: 3).
Por outro lado, os modelos mentais remetem sempre para aquilo que
Grize designa como «pré-construídos culturais» (ou seja, depósitos que as
representações sociais deixam na língua) e que são determinantes no
feixe de possibilidades que se geram em torno do uso das palavras
(abrindo um campo de predicados).

No processo de esquematização várias operações ocorrem, desde a
extração cognitiva a partir dos pré-construídos culturais até às
configurações com que se organizará o discurso. Mas — ponto importante
a reter — uma dessas operações — a que faz passar das determinações
das classes de objetos e dos pares predicativos ao enunciado — é a que
assinala a incontornável tomada de posição do sujeito. Deste modo, e
atendendo a que as «esquematizações» são indissociáveis da situação de
interlocução e de um contexto particular, a discursividade torna-se
indissociável da argumentatividade. «Daqui decorre — escreve Grize
(1997: 6) — que todo o discurso tem uma dimensão argumentativa, que
uma esquematização não é construída apenas perante alguém, mas
para
alguém. Uma esquematização, ato semiótico, dá a ver aquilo que
designarei por
imagens: certamente imagem do que está em questão,
mas também imagem daquele que fala e imagem daquele a quem se
dirige». A abordagem da lógica natural aponta, assim, para uma
omnipresença do argumentativo no discurso — «comunicar as suas ideias
a alguém é sempre, pouco ou muito, argumentar» (1997: 9).

Uma tal ideia remete, por um lado, para a afirmação de que a
discursividade se organiza através de operações seletivas que são,
simultaneamente, opções que configuram modos de ver e de dar a ver;
implica, por outro, que as representações chegam sempre já ao discurso
com uma incidência guiada pela especificidade das situações e marcadas
pela impossibilidade «de sair de mim mesmo para apreender as coisas do
exterior» (Grize, 1992). É que, para Grize, o dizer é já passar do pré-
linguístico das noções (que na realidade são indizíveis) a um segundo nível
— o discursivo — em que se lida sempre com configurações específicas e
aplicadas. Poderíamos dizer de outro modo: a perspetivação é inerente à
discursividade e é essa inerência configurativa que torna a
argumentatividade uma dimensão incontornável do discurso. No plano da
comunicação e da interlocução, a lógica do discurso, guiada pelas
representações do assunto em questão, de nós próprios, das que fazemos
daquele a quem nos dirigimos numa situação concreta e pelo modo
peculiar como a seletividade opera nas esquematizações (nomeadamente
através de processos de filtragem e de saliência), conduz-nos à
argumentatividade como um dos componentes constitutivos da lógica
natural da discursividade.


Rui Alexandre Grácio
 
VocAbulário
 
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