AUDITÓRIO UNIVERSAL
A noção de auditório universal foi cunhada por Perelman & Olbrechts-
Tyteca e tem sido alvo de interpretações controversas. Grande parte das
dificuldades interpretativas desta noção reside no facto dela ser
simultaneamente utilizada quer no quadro da
teorização da
argumentação
levada a cabo pelos autores, quer no da filosofia do
razoável
 que também propõem.

No quadro da teoria da argumentação, o auditório universal é uma noção
descritiva
que caracteriza um género específico de discurso: o discurso
filosófico. Ela é forjada para responder à questão: «como representaremos
para nós próprios os auditórios aos quais é conferido o papel normativo
que permite decidir do carácter convincente de uma argumentação?
(Perelman & Olbrechts-Tyteca, 1988: 39). Os filósofos aspiram à
universalidade e não se contentam em ser persuasivos: aspiram a
convencer e isso é indissociável do recurso a uma imagem de razão que
procuram incarnar com o seu discurso. Uma consideração histórica das
aspirações filosóficas mostra a recorrente associação entre a imagem de
razão, as características da necessidade e da universalidade e a
consideração da razão como razão eterna. Neste sentido, escrevem, «uma
argumentação que se dirige a um auditório universal deve convencer o
leitor do carácter constrangedor das razões fornecidas, da sua evidência,
da sua validade intemporal e absoluta, independentemente das
contingências locais ou históricas» (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 1988:
41). Neste sentido, o recurso ao auditório universal surge como «norma
de argumentação objetiva» (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 1988: 40),
ainda que esta norma seja sempre construída pelo próprio orador. A
corroborar isto está a afirmação segundo a qual «o auditório universal é
constituído por cada um a partir do que ele sabe acerca dos seus
semelhantes, de forma a transcender algumas oposições de que tomou
consciência. Assim, cada cultura, cada indivíduo tem a sua própria
conceção de auditório universal e o estudo destas variações seria muito
instrutivo, pois ele far-nos-ia conhecer aquilo que os homens
consideraram, no curso da história, como real, verdadeiro e objetivamente
válido» (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 1988: 43). Ou, ainda, «(...) tudo o
que, na argumentação é suposto incidir sobre o real, caracteriza-se por
uma pretensão de validade para o auditório universal» (Perelman &
Olbrechts-Tyteca, 1988: 88). Independentemente da conceção associada
ao auditório universal, este caracteriza-se por ser um
apelo à razão.

Já no quadro da filosofia do razoável, que reconhece que «o auditório
universal é, como os outros, um auditório concreto que se modifica com o
tempo, com as conceções que dele faz o orador» (Perelman & Olbrechts-
Tyteca, 1988: 650) o apelo ao auditório universal representa um
imperativo ético: «propomos, quanto a nós, uma conceção de
argumentação racional que, porque compromete tanto o homem que a
elabora como o que a admite, pode, por esse motivo, ser submetida ao
imperativo categórico de Kant: nós só deveríamos admitir e propor à
adesão de outrem enunciados e meios de prova que possam, perante os
juízes que nós somos, valer ao mesmo tempo para uma universalidade de
espíritos» (Perelman, 1972: 153. Itálico nosso). Ele está intimamente
ligado à
ideia de justiça (e, por conseguinte, as suas questão são de
direito e não de facto) e, segundo a conceção de Perelman, «a atividade
do filósofo, mestre da sabedoria e guia na ação, é tomada de posição,
correlativa de uma visão do mundo; ela inspira-se numa seleção, numa
escolha. Mas o perigo da escolha é a parcialidade, a negligência de pontos
de vista opostos, o fechamento às ideias de outros. A dificuldade da tarefa
do filósofo reside no facto de que ele deve, como um juiz justo, decidir,
permanecendo imparcial. É por isso que a racionalidade do filósofo terá
como regra a regra de todos os tribunais dignos desse nome,
audiatur et
altera pars
. É preciso que, em filosofia, os pontos de vista opostos se
possam fazer ouvir, venham eles donde vierem e sejam eles quais forem.
Isto é fundamental para os filósofos que não acreditam poder fundar as
suas conceções na necessidade e na evidência, pois é a única forma pela
qual podem justificar a sua
vocação para a universalidade»
(Perelman,1968: 62.). É esta vocação para a universalidade que, em
última análise, faz da filosofia um diálogo sem fim e do tipo de justificação
da racionalidade filosófica algo que não se encontra, nunca, concluído. No
quadro da filosofia do razoável a noção de auditório universal está ligado à
eficácia prática e social da filosofia. Se, por um lado, «a filosofia, não é
uma atividade puramente teórica e crítica, mas pode desempenhar uma
função construtiva na conduta dos indivíduos e das sociedades,
determinando racionalmente as normas e os valores» (Perelman, 1968:
24), sendo o seu papel específico «propor à humanidade princípios de
ação objetivos, isto é, válidos para a vontade de todo o ser razoável»
(Perelman, 1968: 61), por outro, há que dizer que a intenção de
universalidade que anima o discurso filosófico e faz deste discurso um
apelo à razão «não é senão uma tentativa para convencer pelo discurso os
membros deste auditório, composto pelo que o senso comum chamaria os
homens razoáveis e informados» (Perelman, 1968: 63). Este ponto deve
reter a nossa atenção: o filósofo não se dirige ao auditório universal senão
na medida em que é necessário precisar, renovar ou intensificar
a adesão
a valores
, a noções e a lugares comuns que, atualmente, o definem
enquanto comunidade de sentido. Ele é fundamental para os acordos
prévios que estão na base de qualquer argumentação.

O discurso filosófico «paga» a sua dimensão edificante — Perelman refere
mesmo o papel da filosofia como «educadora do género humano» (1990:
817) — pelo compromisso com uma intenção de universalidade que deve
assegurar, nas metamorfoses por que passa, a continuidade e
racionalidade do senso comum. Neste sentido
o princípio da
universalização é o sine qua non da razoabilidade
. O auditório
universal é, como referimos, chamado a intervir como operador de
transformação do senso comum. Mas como se realiza este processo?

O senso comum «consiste numa série de crenças admitidas no seio de
uma sociedade determinada e que os seus membros presumem ser
partilhadas por todo o ser razoável» (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 1988:
132). Estas crenças remetem para critérios, normas, princípios e valores
universais. O senso comum é, assim, solidário de um legislação universal
que goza do privilégio de não ter que ser justificada, não porque os
critérios, as normas, os princípios e os valores sejam evidentes, mas
porque não são contestados. Contudo, eles não são, nem imutáveis, nem
incontestáveis; são, além do mais, vagos. E quando se tornam alvo de
explicitação, então o apelo ao auditório universal introduzirá uma relação
transformadora com o senso comum a partir da qual será desenvolvida
uma argumentação que visa possibilitar a transição para uma comunidade
considerada como mais adequada às exigências suscitadas pela novidade
de situações e contextos com os quais temos de lidar e relativamente aos
quais nos temos de adaptar.

Perelman escreveu, sublinhando a solidariedade entre o auditório universal
e o desempenho de uma racionalidade que se assume na sua
historicidade, que «as teses que este auditório [universal] é suposto
admitir, os lugares que ele prefere, os exemplos e as analogias que o
inspiram, variam no tempo. E se os filósofos fazem apelo a este auditório,
é sempre para modificar uma ou outra das teses que ele admite,
apoiando-se sobre outras teses admitidas, que lhe servem de alavanca na
argumentação. É assim que a filosofia é duplamente preciosa à razão
histórica, simultaneamente porque no-la revela e porque a modifica»
(Perelman, 1972b: 103).

No quadro da filosofia do razoável o auditório universal é assim uma noção
normativa intimamente ligada à
conceção retórica da filosofia e ao seu
papel positivo de regulação dos homens enquanto comunidade cuja
partilha e comunhão de princípios e valores universais implicam uma ideia
de razão como razoabilidade e assente na historicidade das práticas
sociais.
Rui Alexandre Grácio
 
VocAbulário
 
© Rui GrÁcio 2015